Dendê, inhame e memória: saberes africanos que atravessaram o Atlântico ganham sabor nas mesas do Recife
Chefe Tayná Passos, do restaurante Ilê Dùn, fala da comida afro-diaspórica Quais os caminhos percorridos por um alimento até o nosso prato? Para além do p...
Chefe Tayná Passos, do restaurante Ilê Dùn, fala da comida afro-diaspórica Quais os caminhos percorridos por um alimento até o nosso prato? Para além do plantio nos campos, distribuição nos mercados ou armazenamento nas dispensas, há uma trajetória simbólica. Um percurso feito por gerações, que insiste em transpor o tempo, a escravização e a tentativa de silenciamento de um povo. As diásporas africanas foram os deslocamentos forçados de milhões de pessoas para diferentes partes do mundo durante o tráfico transatlântico de escravizados. Esse movimento levou não apenas corpos, mas também saberes, memórias e sabores. O Dia da Consciência Negra, celebrado nesta quinta-feira (20), é oportunidade para ouvir as histórias daqueles que ajudaram a construir o Brasil. O g1 conversou com chefs de cozinha, pesquisadores e sacerdotisa de terreiro para entender a importância da culinária afro-brasileira. Afinal, o que nos nutre também vem de mãos negras, e a culinária afrodiaspórica é um exemplo disso (veja vídeo acima). ✅ Receba no WhatsApp as notícias do g1 PE Os saberes que atravessaram o Atlântico com a escravização precisaram, como forma de resistência, se adaptar a uma nova realidade. É o caso da culinária, cujos processos, preservados na memória dos africanos, foram repassados com ajuda da oralidade. "Não tem como você falar de uma identidade brasileira sem você falar da importância dos africanos e da cultura africana nas nossas vidas. O africano está presente, ele faz parte da construção desse país. Seja com sua força de trabalho, seja com os seus saberes, as suas epistemologias", disse o historiador Mário Ribeiro, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Acarajé servido no restaurante Ilê Dùn, no Recife Restaurante Ilê Dùn/Divulgação Os ingredientes, muitas vezes, precisaram ser substituídos por similares, pois alguns alimentos não estavam disponíveis no "novo mundo". "Não chegou um livro de receitas aqui dizendo como fazer cada prato. É uma cultura ensinada, passada através da oralidade e da vivência. E cada casa faz de um jeito. Faz como aprendeu com o seu mais velho", pontua o historiador da UFPE. No imaginário brasileiro, a culinária afro-brasileira é muito atribuída a Salvador. Mas ela também está presente em diversas cidades, em especial na região Nordeste. Na capital pernambucana, chefs de cozinha perpetuam e reverenciam essa tradição. Altar Cozinha Ancestral No bairro de Santo Amaro, no Centro do Recife, o restaurante Altar Cozinha Ancestral funciona, há mais de uma década, sob os cuidados da chef Dona Carmem Virginia. Em 2024, foi reconhecido como Patrimônio Cultural e Gastronômico da cidade. Com cardápio diverso, os pratos são divididos nas categorias terra, água, fogo e ar. Desde o Ogunhê, que é um bolinho de feijoada, até o Oyá Messan, o tradicional acarajé, trazendo para mesa a uma comida afro-brasileira autêntica. O g1 conversou com Dona Carmem e perguntou o que caracteriza, para ela, a culinária afrodiaspórica. "Antes de tudo é quem está fazendo. As mãos de quem faz. Não dá para fazer culinária diaspórica quando você não é negro e não se entende como negro. É preciso ter um pouco de dor e de prazer nessa coletividade", contou. Dona Carmem Virgínia e Rodney William falam sobre a tradição da culinária ancestral no Candomblé Para Dona Carmem Virginia, cozinhar respeitando os ensinamentos dos ancestrais é uma forma de transpor um passado de sofrimento e preservar a cultura negra. "A dor fica só nas lembranças de como que a gente chegou aqui. Mas dessas lembranças tristes, a gente também fica envaidecido e se sentindo privilegiado por sair desse núcleo de dor e, ainda assim, herdar tanta coisa linda, tantos ingredientes, tanto jeito de falar, tanta beleza que é a nossa cultura, a nossa culinária", afirmou. Desde jovem, ela escolheu o caminho de honrar os temperos, ingredientes e modos de preparos ancestrais. "De alguma forma, essa cozinha ancestral já estava dentro de mim e só precisou de um empurrão do acaso, do destino, dos orixás. (...) Eu sou uma menina de terreiro de Candomblé, desde criança, e isso me pertence muito. Eu não vendi uma história que me foi apresentada da noite por dia", conta. Ilê Dùn, a "casa doce" História semelhante é a da chef de cozinha e pesquisadora Tayná Passos, de 30 anos, que há seis anos trabalha com culinária afro e afro-indígena. Hoje ela comanda o Ilê Dùn, que fica no Barro, na Zona Oeste do Recife. O nome do restaurante significa “casa doce” em iorubá, e busca traduzir "um espaço de acolhimento, sabor, memória e potência", como contou ao g1 a cozinheira. O menu nasceu para representar suas vivências e pesquisas na área. "Minha base é uma cozinha contemporânea inspirada nas tradições africanas e afro-indígenas, dialogando com ingredientes e técnicas que fazem parte da história alimentar do Recife e de Pernambuco (...) Cada prato carrega memória, território, espiritualidade e pesquisa", disse Tayná. Chef Tayná Passos usa óleo dendê nas suas receitas Nicole Rodrigues/Divulgação No cardápio, encontramos opções como croquete de inhame-vermelho com charque, uma "Feijoada Afro Pernambucana", feita com amendoim e charque, e o "Risoto da Diaspóra", preparado com camarões, lombo suíno, frango, quiabos, pimentões e dendê. Para Tayná, continuar reverberando os ingredientes e modos de preparo utilizados por seus antepassados é uma forma de reafirmar e preservar a identidade. "Reconhecemos facilmente a contribuição europeia na culinária, mas quase nunca valorizamos os povos africanos e indígenas como fundamentais na construção alimentar e social do Brasil", relata a chef e pesquisadora. Para ela, a culinária afrodiaspórica é uma "biblioteca viva", montada por saberes, sabores, técnicas e práticas alimentares. Ingredientes como dendê, gengibre, inhame, feijão-fradinho e coentro são de origem africana e compõem a culinária afro-brasileira. O uso do pilão, das panelas de barro, das colheres de pau também são característicos dessa tradição. "Ela [culinária afrodiaspórica] está nos terreiros, nas nossas casas, nas tecnologias tradicionais, no gesto de provar a comida com a mão, que é ancestralidade pura nos restaurantes contemporâneos, nos quintais de avó, de mãe, nos sítios, mercados e feiras, nos quilombos e comunidades periféricas", conta Tayná. Para além dos restaurantes A culinária afro-brasileira encontra morada também fora dos restaurantes. Ela também está presente nas tradições domésticas, como o cuscuz de milho, tão celebrado no Nordeste. "Ninguém acredita que está comendo comida de matriz africana ali, mas o cuscuz é uma comida de matriz africana. Porque no norte da África, no Maghreb, se fazia cuscuz com semolina. E aí essa tecnologia chega [no Brasil] com essas populações. Na ausência da semolina, passa-se a usar o milho", informa o antropólogo da alimentação Bruno Albertim. Ao olhar para as tradicionais festas juninas, em celebração ao São João, a comida também reverencia as tecnologias africanas, como o leite de coco, muito utilizado em Moçambique. "Os portugueses se apropriaram de várias tecnologias alimentares dos povos subjugados. Uma delas é o leite de coco. É uma coisa que se fazia na África há muito tempo, a extração desse sumo leitoso do coco", conta Bruno Albertim. Outro local onde a comida afrodiaspórica encontra refúgio são os terreiros. Há dois séculos, quando esses espaços religiosos começaram a se organizar no Brasil, a culinária atuou como um dos pilares. "Quando os terreiros de Candomblé passam a se organizar, ainda no período colonial, no século XIX, eles vão começar a fazer os pratos para as divindades e, dessa forma, a gente também vai garantir a continuidade dessas tradições, dessas culturas", lembra o historiador Mário Ribeiro. Pontuando a importância dos terreiros na manutenção dessa tradição gastronômica, o Recife realiza, como parte da programação oficial do Ciclo Junino, a Exposição Culinária Afro-brasileira. A celebração chegou em sua 17ª edição neste ano, organizada sempre pelo povo de terreiro. Comidas de santo são servidas durante a Exposição de Culinária Afro-Brasileira, nesta quarta (20), no Sítio da Trindade, no Recife Divulgação/Andrea Rêgo Barros/PCR Mãe Elza de Yemojá, pesquisadora e sacerdotisa de Jurema e Candomblé, é uma das fundadoras do evento. Em entrevista ao g1, ela contou que, através da comida, buscam aproximar o público da cultura vivenciada nos terreiros, que sofrem com preconceito religioso e racismo. "Em 2025, todas as comidas das divindades foram expostas. Todo mundo começou a provar o acaçá, o arroz, o ebo e dizer: 'Que comida diferenciada'. Então, a gente foi criando esse diálogo. Lembrando o saudoso Frei Tito, a gente dizia que quanto mais a gente se comunicava com as pessoas não-religiosas de matriz africana, mais elas entendiam a cultura africana, mais elas entendiam a perseguição como algo que realmente era racismo", comentou. Em meio ao racismo que ronda os fazeres do povo preto, celebrar a ancestralidade dentro da cozinha ainda requer coragem. Sobre esses desafios, Dona Carmem Virginia fala de uma dualidade. "É terrivelmente saboroso. É terrível porque há pessoas que ainda não aceitaram, mas eu também não estou mais interessada nessas pessoas. Eu tenho que manter as pessoas que se interessam por mim (...) De dizer assim: 'eu queria te apresentar o meu povo pelo lado do sabor, do prazer, e não pelo lado da dor", revelou. * Estagiária sob a supervisão do editor Pedro Alves. 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